terça-feira, 19 de junho de 2012

"Skinheads voltaram a atacar no centro da cidade. O alvo foi um casal de homossexuais que estaria praticando atentado violento ao pudor"

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Contava ansioso os minutos para que tocasse o sinal. Já saia de casa pensando na hora do recreio. Durava somente quinze minutos. Esse intervalo de tempo era o que eu tinha para poder vê-lo.
Escolhia minuciosamente a roupa que ia vestir, roubava o perfume do meu irmão mais velho, porque achava que o dele sempre era melhor que o meu. Tentava encontrar a melhor forma para o cabelo. A dúvida de colocar gel, consumia mais minutos do que eu dispunha para encontrá-lo. Sempre fui determinado, mas aquele sentimento havia abalado minhas estruturas e sentia uma insegurança avassaladora.
- Parece que está no mundo da lua! - alguém do grupo sempre dizia, quando estávamos no pátio. Fiscalizava cada perímetro do lugar. Aquele vai e vem de pessoas rindo, conversando, gritando, correndo... a rotina da escola seguia igual, mas para mim era diferente. Vivia em um mundo paralelo.
Foram três anos assim. O tempo que durara o curso. Já tinha dezenove e no último semestre, eu e meus amigos éramos os mais populares e quase todas as garotas queriam ficar com a gente. Nos limitávamos no nosso mundo infinito: escola, pista de skate, festa e discoteca.
Meu coração apertava e a cabeça ficava perdida enquanto os olhos não o avistava. A necessidade de dividir o mesmo ar era tão profunda que não me importava vê-lo nos braços de outra qualquer. E entregado no abraço de qualquer uma era a maneira de permancer no grupo e seguir convivendo com ele.
Não sei como explicar, pois parece tudo muito distante. Não consigo entender que estávamos sempre nos mesmos lugares, tínhamos muitos amigos em comum e nós dois apenas nos cumprimentávamos.
- Você não vai com a minha cara, né? - perguntou enquanto mijava, apoiando o braço na parede. Era a terceira vez que coincidíamos em um banheiro.
- Não...
- Eu sabia!
- Não... não é isso. Pelo contrário, acho você um cara legal.
- Sério mesmo? - perguntou sorrindo, enquanto subia o zíper da calça - Você sempre me olha com cara feia!
- É impressão sua, cara! - respondi nervoso. As pálpebras dele estavam quase fechadas. Havíamos bebido muito naquela noite. Ia dizer alguma coisa, mas chegaram mais três garotos gritando e o som da discoteca me calou, quando abriram a porta.
Duas semanas depois, na festa de Laura, voltamos a nos falar. As garotas com as que estávamos ficando continuaram na sala dançando, enquanto nós dois saimos para a varanda. O que sentia por ele me dava a sensação de familiaridade e intimidade, mas eu tentava entender que isso eram truques do meu sentimento. Não podia demonstrar isso em nenhum momento.
- Cara, pelo jeito a coisa está séria entre você e a Sandra, né?- perguntou enquanto acendia um cigarro.
- Sei lá... a gente se curte.
- No feriado eu e a Paula vamos para a praia. Se vocês quiserem vir. Meu pai já liberou a casa.
Senti um frio na barriga e só de imaginar uma viagem com ele, comecei a tremer. Respondi que aceitava, forçando uma certa naturalidade. Convidei a Sandra para que fôssemos e ela aceitou na hora.

                                                               2

Quando liguei para Sandra e ela disse que não poderia ir, pois a mãe havia adoecido, entrei em pânico. Não sabia como seria a viagem sem ela. Na hora me senti um pouco egoísta, mas o desejo de estar ao lado dele era tão grande que qualquer reprovação moralista desapareceu na hora. Iria de qualquer jeito. Afinal, eu já havia me comprometido e eles dependiam do meu carro para chegar até a praia.
Buzinei na hora marcada. Fazia calor e eu suava como nunca. Quando ele apareceu no portão com a mochila nas costas, senti uma felicidade nunca experimentada. Aquele sorrisão branco despreocupado, moldurado pela boca vermelha perfeitamente desenhada por Deus.
- Cara, você nem sabe o que aconteceu - disse enquanto apoiava a mão na porta do carro - Eu e a Cris acabamos brigando ontem e ela desistiu de ir. Terei que segurar vela.
Olhei para ele e naquele instante comecei a acreditar de alguma forma que realmente o destino existia. Quando comuniquei que Sandra tampouco iria, ele fez festa e comemorou o fato de que estaríamos "solteiros" na praia. Seriam quatro dias de festa e muitas possibilidades.
Durante a viagem, coloquei Legião Urbana para nos acompanhar.
- O Renato era um poeta, né?
- Com certeza, as letras dele são ótimas. - respondi.
- Gostaria de ter vivido os anos oitenta. Meus pais dizem que foi uma época muito boa para a música e que só tinha fera.
- É verdade. A Legião marcou uma geração...
E estendemos a conversa sobre música e citamos as bandas e os artistas que se destacaram nos anos oitenta, época que nós ainda éramos bebês. Depois falamos sobre cinema e futebol. Naquelas duas horas que durou o trajeto, descobrimos que tínhamos muitas afinidades.
- Pô, cara! Nós nos conhecemos há tanto tempo e não nos conhecíamos! - disse ele exaltado - Sempre achei você um pouco arrogante.
Dei risada e não soube o que responder.
Quando chegamos ao nosso destino, fiquei gratamente surpreso em descobrir que a casa estava em frente a praia. Tínhamos cerveja e comida para quatro dias. Apesar de ser véspera de feriado, não havia muito movimento na cidade. Era tarde e decidimos ficar em casa. Na televisão, uma partida de futebol e o melhor de tudo era que torcíamos para o mesmo time.
Enquanto ele preparava sanduíches, coloquei algumas latas de cerveja em um balde com gelo e sal. Pouco tempo depois estávamos sentados no sofá assistindo o jogo. Era tudo perfeito e para completar, o Flamengo ganhara de dois a zero do Fluminense.
- Você pode escolher o quarto que quiser - falou - Eu vou dormir no dos meus pais.
Me acomodei no que estava ao lado e embora estivesse cansado da viagem e um pouco bêbado, não conseguia pregar o olho. O cara pelo qual eu estava apaixonado há três anos estava a poucos metros da minha cama. Tantas noites em branco pensando nele, com a sensação de uma distância cruel e injusta. Agora estávamos ali, pertos um do outro. Isso já era muito, mas meu coração queria mais...

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Duas noites depois aconteceu o primeiro beijo e consequentemente uma noite de paixão. O silêncio incômodo do dia seguinte, a viagem de volta com poucas palavras e o processo difícil de assimilar a situação. A dúvida, o medo e o terror de ficar longe dele. A indiferença e a falta de notícias eram motivos para uma angústia sem fim.


Passaram algumas semanas e ele me ligou. Marcamos um encontro. Apareceu ao lado de outra garota e lamentou que eu e Sandra já não estávamos mais juntos. Ele agia como se nada tivesse acontecido.
Três meses depois, por ocasião de outro feriado, me convidou para que fôssemos a praia. Quando frisou que seríamos só nós dois, gozei de tanto êxtase.
Eu o amava como a mim mesmo. E sabia que era recíproco. O processo de auto aceitação para ambos foi difícil. Depois de dois anos, decidimos revelar para nossas famílias e amigos o que todos suspeitavam. Ainda assim foi um choque e só tornei a sentir o amor dos meus, alguns meses depois. Acabaram se acostumando com a ideia e os que não aceitavam, respeitavam. Foi difícil romper preconceitos e tabús. Demonstrar que éramos felizes juntos e que não prejudicávamos ninguém. Quando nossos pais aceitaram a realidade, deixaram de sofrer. Perceberam o quanto foram egoístas por terem criado tantas expectativas sobre a gente.
- Eu te amo, cara! - me disse pela primeira vez, depois de quatro anos, enquanto eu estava lendo uma revista na casa dele. Surpreso, olhei em seus olhos e disse que também o amava.
Notei o quanto éramos diferentes da maioria das pessoas nesse momento. Pois éramos namorados há tanto tempo e sabíamos que nos amávamos verdadeiramente. Todos os gestos e atos demonstravam isso. O olhar, o sorriso e o respeito dissipava a carência das palavras. Estávamos crescendo juntos. Já não lembrava da vida sem ele.
Alguns anos se passaram e a nossa relação teve altos e baixos. Surgiram outras paqueras e mal entendidos. Mas nunca perdemos o amor que tínhamos. A base da nossa convivência era a liberdade. E às vezes eu chegava a pontos que ele não acompanhava e vice-versa. Esses eram os momentos mais difíceis. Os mais felizes era quando nos reencontrávamos. Estávamos em constante evolução. Voávamos como os pássaros em perfeita harmonia e assim como eles, de vez em quando um perdia a sintonia, entrando em outra corrente. Mas sempre voltávamos para nós.
Quando chegamos aos trinta, nos encontramos de forma definitiva. Já não havia ansiedade, apenas pequenos sonhos e éramos tão livres que sabíamos que o cumprimento deles ou não, jamais afetaria a nossa felicidade. Estar ao lado do outro era suficiente. Éramos imperfeitamente perfeitos em nossos planos, acertos e erros.

                                                                  4

Nunca esquecerei daquele dia. Ele se repete uma e outra vez na minha cabeça e nos meus pesadelos. Acordo assustado pela noite e não consigo voltar a dormir. Tenho a sensação de não haver descansado desde então. Tenho medo de tudo.
Sai do escritório às oito da noite e fui direto para o hospital. Queria conhecer o pequeno Matheus que acabava de nascer, trazendo com ele a alegria de outra vida que chegava. Fui contagiado pela empolgação da sua voz, quando me ligou.
- Nosso primeiro sobrinho! - dizia - Ele é lindo, parece muito com a minha irmã!
Durante o trajeto, tive um problema com o carro e somente depois de duas horas, pude chegar. Já sabia que a visita seria para o dia seguinte, mas mesmo assim fui até o hospital para pegá-lo e irmos para a nossa casa.
Parei na rua de trás, onde pude estacionar.  Liguei avisando que já estava ali. Cinco minutos depois ele veio correndo com aquele sorriso lindo de felicidade.
Não sei... quiçá eu tivesse permanecido no carro, a história seria diferente. Talvez se vivêssemos em outra sociedade, eu ainda o teria comigo.
Abri a porta do carro e sai ao seu encontro. Nos abraçamos efusivamente e ele acabou me beijando. A rua tinha pouca iluminação, era tarde e não passava ninguém.
- Vocês devem morrer, seus viados filhos da puta! - lembro dessa voz até hoje, carregada de ódio. Senti uma pancada na cabeça e minha vista se escureceu.


Quando voltei a abrir os olhos, me contaram o desfecho daquele dia fatídico. Estive em coma durante quinze dias. Ele já não estava. Fora expulso deste mundo hediondo e levou consigo toda a minha vida.

Voltei a morar com a minha família, pois não tinha (e ainda não tenho) forças de regressar àquela casa. Meses depois, arrumando uns livros, encontrei uma folha de jornal. Desdobrei e vi no rodapé dela uma nota que me entristeceu ainda mais, cuja manchete era:

"Skinheads voltaram a atacar no centro da cidade. O alvo foi um casal de homossexuais que estaria praticando atentado violento ao pudor."

                                                                                                               fim



O Grupo Gay da Bahia  faz a contagem de homicídios motivados pela homofobia através de notícias publicadas na imprensa. Segundo o levantamento, em 2011 ocorreram 266 homicídios - um recorde desde o início dos levantamentos na década de 1970. De acordo com o GGB, foi o sexto ano consecutivo em que houve aumento desse tipo de crime. 


Atrás de cada número existe o fim de uma vida, o fim de uma história. 

A relação é que a cada um dia e meio ocorre uma morte. O Brasil é um país relativamente perigoso para homossexuais

Um comentário:

T&##a disse...

adorei a historia mas fiquei muito triste no final, pois estamos no pais livres e isso nei tinha q acontece.... mas infelizmente acontece nesse pais de bosta.